segunda-feira, 30 de maio de 2011

A Gazela



                                 Donizete Ardência era considerado um dos machos mais atrevidos e fogosos da Vila Dependência. Era rústico, brusco e grosseiro.

                    Alguns diziam ser ele homossexual enrustido que, ao invés de assumir tal condição, minimizando a inquietude “mordendo fronhas”, preferia atacar as figuras masculinas que lhe instigavam os desejos sexuais.

                    Entretanto outros garantiam que, quando caminhava sozinho pela rua, defronte sua casa, geralmente sem camisa, de bermudas e chinelos, abaixava a cabeça ao cruzar com os homens espadaúdos, mais altos, belos e melhor vestidos.

                    Mas a crueldade mesmo só era evidente naquele ser, quando, no puxadinho do fundo do quintal, da casa da mamãe, reunido com as almas desnorteadas que o paparicavam, punha-se a murmurar, por horas e horas seguidas, amaldiçoando a humanidade.

                    - Essa carniça do inferno ao ver uma pessoa bonita, ao invés de fechar os olhos, ou desviar o olhar, para evitar as emoções (consideradas por ele condenáveis, pecaminosas), que suscitam a estampa, procura logo um jeito de destruí-la, a fim de que não seja mais perturbado por ela.  – afirmou Van Grogue sobre o Ardência, na manhã de domingo, no bar do Maçarico, depois da oitava cerveja.

                    - Eu não acho que ele seja assim tão viril ou enérgico, do jeito que pensa a amásia dele. – garantiu o Charles Brochon tombando o copo, deixando cair sobre o chão, certa quantidade de pinga “para o santo”.

                    - Vai ver é uma gazela com medo da verdade. – concluiu Maçarico.

                    - Vamos fazer um teste pra saber se esse tal é ou não é homem. – propôs Virgulão fechando o caderno de esportes do Diário de Tupinambicas das Linhas, onde lia a matéria sobre o Corinthians.

                    - Teste? Que teste? – interessou-se o atordoado Van Grogue.

                    - Se ele conseguir beber uma garrafa inteira de Velho Barreiro sem desmunhecar, então a gente não pode falar que ele é boiola. É verdade ou mentira? – indagou Virgulão.

                    Todos concordaram com a tese e, inventando um pretexto, fizerem vir ao boteco o famoso Donizete Ardência.

                    Donizete entrou no recinto vestindo um curto short branco; estava sem camisa e seus chinelos eram pretos.

                    - E aí, cadê o cara que me deve? Ele trouxe meu dinheiro? – inquiriu, com rudeza, o moço que chegava.

                    Todos olharam para o Donizete, mas a atenção geral logo se fixou no Delsinho que, ao passar rebolando na frente do boteco, disse em voz alta:

                    - Ardência! Você não vai demorar aí, né? Eu tenho que comprar mistura criatura! O meu feijão está no fogo. Volta logo pra casa que se não vai queimar tudo.
 
                    Todos no quarteirão sabiam que Donizete Ardência sentia muita vergonha, por ser aquele seu tio, uma pessoa efeminada. 

                    Algumas línguas soltas e também outros tantos teclados peçonhentos, garantiam que, certa vez, Ardência num momento de fúria, empunhando uma peixeira enorme, correu pela rua, atrás do Delsinho, gritando pra todo mundo ouvir: “Veado! Veado! Você é um veado!”

                    Agora ali, num dos bares mais famosos da Vila Dependência, Ardência respondeu ao tio com um gesto e, depois que ele se foi, falando para todos comentou:

                    - Hoje é domingo e a biba vai fazer feijão. Mas é uma besta mesmo.

                    - Donizete, andam falando por aí que você é uma tremenda bicha enrustida que não pode nem ver um copo de pinga. É verdade? – quis saber Van de Oliveira.

                    - É inveja. Essa negadinha tem inveja de mim. Eu sou macho. Muito macho. Mas cadê o veado que me deve? Já fugiu? – indagou Ardência.

                    - Ele saiu dizendo que ia comprar tinta, mas já volta. - respondeu Maçarico.

                    Virgulão abriu uma garrafa de Velho Barreiro e com um olhar irônico, postou-a sobre o balcão, bem na frente do Ardência.

                    O moço feroz entendeu o gesto. Ele sabia que se não aceitasse o desafio, perderia o respeito dos homens do bairro.

                    Então, Donizete Ardência começou a beber.

                    Depois de algum tempo e já completamente embriagado, ao som de A Festa no Ape, do Latino, que vibrava no rádio, ligado momentos antes por Maçarico, Ardência principiou a dançar.

                    O moço bravo dançava sozinho e não se espantou quando alguém colocou sobre o balcão, um facão de cortar cana.

                    Ardência pegou a ferramenta dando com ela golpes violentos no chão do boteco. O atrito do metal com o cimento fazia levantar faíscas incandescentes.

                    Logo depois do meio-dia, quando Maçarico já só, varria o chão, momentos antes de fechar o estabelecimento, notou as marcas deixadas pela agitação do Donizete.  Eram riscos curtos e superficiais.

                    Na segunda-feira à noite, quando Ardência, ainda de ressaca, atendendo aos pedidos da enteada, entrou no bar, para comprar biscoitos de maizena, notou curioso, que um pintinho amarelo, descontraído ciscava o chão. 

30/05/11  
                     

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